Saturday, July 26, 2008

VISOES DA VIDA


Luiza, dois aninhos, estava me olhando com aquele misto de curiosidade e receio típico dos bebês por trás das grades da casa onde mora com a mãe. De repente, começou a “brincar de cuti”, como dizem lá na minha terra. Aposto que você conhece a brincadeira, mesmo que estranhe o nome: ela se escondia atrás da parede e logo depois espichava o pescoço para mostrar a carinha de novo, repetindo o processo várias e várias vezes. Crianças novinhas, por um desses mistérios do Universo, adoram fazer isso. (O adulto que entra no jogo fica encarregado de exclamar “cuti!” toda vez que o bebê mostra o rosto de novo, daí o nome da brincadeira.)

Luiza é um bebê chimpanzé, o que explica o meu espanto ao vê-la brincar exatamente como uma criança humana da mesma idade. O fato é que nenhum compêndio sobre comportamento primata, nenhum documentário de TV é capaz de preparar alguém para o primeiro contato direto com um grande macaco – a categoria que engloba, além dos chimpanzés comuns, os bonobos (ou chimpanzés-pigmeus), gorilas e orangotangos. As últimas décadas de pesquisa mostraram com riqueza de detalhes como a vida social, comportamental e cognitiva desses bichos é complexa e – sem querer fugir do clichê – demasiado humana. O que nos leva à questão óbvia: o que devemos fazer com esse conhecimento?

Alguns dos mais destacados cientistas e filósofos do mundo, entre eles o zoólogo Richard Dawkins e a primatóloga Jane Goodall, dizem saber a resposta. Para eles, a única atitude moralmente aceitável é instituir uma Declaração Universal dos Direitos dos Grandes Macacos, promulgada pela ONU, à semelhança da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esse é o objetivo do GAP (sigla inglesa para “Projeto Grandes Macacos”), que prevê três direitos inalienáveis para esses primatas: o direito à vida; o direito à liberdade; e o direito a não ser torturado.

Parece loucura? Não depois de uma visita ao lar de Luiza, o santuário de chimpanzés em Sorocaba (interior paulista) que é o braço brasileiro do GAP. É lá que o empresário de origem cubana Pedro Ynterian abriga cerca de 40 animais, quase todos oriundos de zoológicos ou circos, muitos com histórico de maus-tratos. A analogia que vem à mente para descrever o lugar é uma mistura de orfanato com hospital psiquiátrico.

Para os bichos mais jovens ou para Luiza, que tem a sorte de contar com a companhia da mãe, ainda são grandes as chances de levar uma vida normal. Os adultos, porém, têm seqüelas visíveis. O lado ruim de pertencer a uma espécie muito inteligente e com vocação para a vida social complexa é que qualquer perturbação nessa trajetória pode causar problemas sérios.

É o caso de vários dos chimpanzés do santuário, muitos dos quais “adotados” ainda bebês por famílias humanas, sem que elas se dessem conta de que, em quatro ou cinco anos, o bichinho de estimação teria dentes afiados e uma força equivalente à de um homem adulto. O resultado: dentes arrancados ou marcas de correntes pesadas no corpo. Viver cercado por gente também deixou os bichos totalmente despreparados para o contato com membros da própria espécie – quase todos os machos do santuário são impotentes, e as fêmeas, caso engravidem, correm o risco de não saber cuidar dos próprios filhotes, ou até de machucá-los. Há pouquíssima esperança de que mesmo os mais jovens consigam aprender a se virar sozinhos na natureza algum dia.

Somam-se ao efeito devastador do cativeiro sobre esses bichos os feitos de que eles são capazes. Os grandes macacos se reconhecem no espelho, são mestres em fabricar e usar instrumentos e possuem suas próprias tradições culturais (que variam de lugar para lugar, e de bando para bando). Têm laços familiares e amizades duradouras, além de alianças “políticas”. E, ao que tudo indica, travam “guerras”.

Esse potencial bélico, no entanto, não é nem de longe suficiente para protegê-los de nós. Entre a caça para a obtenção de carne e a destruição de seu habitat, os grandes macacos estão sendo empurrados para a extinção. Nenhuma das espécies dos bichos conta hoje com uma população superior a poucas dezenas de milhares de indivíduos.

O trabalho do GAP tem conseguido alguns avanços importantes – o governo britânico, por exemplo, proibiu recentemente o uso de grandes macacos para pesquisa médica. Por outro lado, é compreensível que muita gente critique o que considera exagero nesse tipo de iniciativa.

Para começo de conversa, a semelhança impressionante entre nós e eles não anula o fato de que ainda há um abismo nos separando. As pessoas adoram citar o número mágico de 99% de semelhança nas “letras” químicas de DNA entre humanos e chimpanzés. Mas, como bem lembra o meu amigo Marcelo Nóbrega, geneticista da Universidade de Chicago (EUA), essa diferença aparentemente mínima se reflete em nada menos que 55% dos nossos genes: essa é a fração das nossas proteínas (codificadas pelos genes) que são diferentes das dos nossos primos. E, afinal de contas, será que já não temos problemas suficientes para fazer com que respeitem os direitos humanos? Para que inventar?

Em última instância, e independentemente do que o GAP conseguirá, esse me parece um daqueles casos em que a nova perspectiva do mundo trazida pela ciência precisa ter um impacto sobre a maneira como lidamos com esse mundo. No fundo, o que menos importa é saber se os grandes macacos são capazes de sentir e pensar exatamente como nós.

Nós não condicionamos a dignidade humana de um deficiente físico ou mental à sua capacidade de entender o teorema de Pitágoras ou de usar um computador, mas ao fato de pertencer à família humana. Da mesma forma, está mais do que na hora de respeitar a complexidade e o potencial de outras formas de vida não pelos moldes nos quais queremos encaixá-las, mas pelo que elas são – membros da nossa família, parentes apenas um pouco mais distantes.

Não vejo como esse salto de imaginação possa desviar nossa atenção do esforço para que os direitos da humanidade sejam mais respeitados. Não dizem por aí que o que mais falta é tolerância com as diferenças? Pois os grandes macacos nos põem diante do desafio de encarar a quintessência do diferente e, ao olhá-lo com o devido cuidado, reconhecer finalmente que ele é também nosso igual.

REINALDO LOPES
REPORTER DA EDITORA CIENCIA E SAUDE

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