Sunday, September 21, 2008
LIXO - CRONICA DE LUIS FERNANDO VERISSIMO
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
_ Bom dia...
_Bom dia.
_ A senhora é do 610.
_ E o senhor é do 612.
_ É.
_ Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
_ Pois é...
_ Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
_ O meu quê?
_ O seu lixo.
_ Ah...
_ Reparei que nunca é muito. Sua família deve se pequena...
_ Na verdade sou só eu.
_ Mmmmm. Notei também que o senhor usa muita comida em lata.
_ É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
_ Entendo.
_ A senhora também...
_ Me chame de você
_ Você também perdoe a minha indiscrição, mas também tenho visto alguns restos de comida em seu lixo, champignons, coisas assim...
_ É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
_ A senhora... Você não tem família.
_ Tenho , mas não aqui.
_ No Espírito Santo.
_ Como é que você sabe?
_ Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito santo.
_ É. Mamãe escreve todas as semanas.
_ Ela é professora?
_ Isso é incrível? Como foi que você adivinhou?
_ Pela letra no envelope. Achei que fosse letra de professora.
_ O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
_ Pois é...
_ No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
_ É.
_ Más notícias?
_ Meu pai. Morreu.
_ Sinto muito.
_ Ele já estava bem velhinho. Lá no sul. Há tempos não nos víamos.
_ Foi por isso que você começou a fumar?
_ Como é que você sabe?
_ De um dia para o outro começaram a aparecera catreiras de cigarros amassadas no seu lixo.
_ É verdade. Mas consegui parar outra vez.
_ Eu, nunca fumei.
_ Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimidos no seu lixo...
_ Tranqüilizantes. foi uma fase. Já passou.
_ Você brigou com o namorado, certo?
_ Isso você também descobriu no lixo?
_ Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
_ É, chorei bastante, mas já passou.
_ Mas hoje ainda têm uns lencinhos...
_ É que estou comum pouco de coriza.
_ Ah.
_ Vejo muitas revistas de palavras cruzadas no seu lixo.
_ É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
_ Namorada?
_ Não.
_ Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
_ Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
_ Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
_ Você já está analizando o meu lixo!
_ Não posso negar que o seu lixo me interessou.
_ Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
_ Não! Você viu meus poemas?
_ Vi e gostei muito.
_ Mas são muito ruins!
_ Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. eles só estavam dobrados.
_ Se eu soubese que você ia ler...
_ Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
_ Acho que não. Lixo é domínio público.
_ Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra da vida dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
_ Bom, aí você está indo longe demais no lixo. Acho que...
_ Ontem no seu lixo...
_ O quê?
_ Me enganei, ou éram cascas de camarão?
_ Acertou. Comprei alguns camarões graúdos e descasquei.
_ Eu adoro camarão.
_ Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
_ Jantar juntos?
_ É.
_ Não quero dar trabalho.
_ Trabalho nenhum.
_ Vai sujar a sua cozinha.
_ Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.
_ No seu lixo ou no meu?
(Extraído de "O Analista de Bagé")
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